A Hierarquia Mundial através da moeda

Como enfrentar a subordinação financeira da América Latina por meio da cooperação regional

COBERTURA DO TRANSFORMA 

Nesta página a Caneta Crítica traz uma cobertura da Nota “Bancos multilaterais de desenvolvimento e a integração regional: uma agenda para o G20”, publicada pelo Transforma (Unicamp) em parceria com a FES Brasil, com autoria de André Biancarelli, Marcos Vinícius Chiliatto e Bruno De Conti. 

Trazemos em linguagem acessível os seus principais debates sem refletir necessariamente as posições da Nota, buscando estimular sua leitura. As versões completas delas estão disponíveis no site do Transforma.

No Brasil, a alta do dólar é capa dos jornais em meio a ondas de especulação que excitam os humores políticos. Na Argentina, a enorme dívida em dólar há décadas solapa a economia com inflação e escassez enquanto as pessoas que conseguem poupar sempre compram dólares, mesmo que o governo proíba. Em El Salvador, Panamá e Equador o dólar chega a ser moeda oficial; o Equador inclusive abriu mão de sua moeda própria, adotando o dólar como única moeda em circulação. Essas situações refletem o desequilíbrio de poder entre o dólar e as demais moedas no mundo – a chamada Hierarquia de Moedas. É um fenômeno complexo, com sérias consequências sociais e econômicas para os países de “moeda fraca” – a maior parte do Sul Global – e que requer articulações internacionais para ser enfrentado.

Onde as moedas fracas não têm vez

Não existe uma moeda “global” supranacional, apenas moedas nacionais. Se o Brasil quer importar algo de um vizinho, esse vizinho vai querer uma moeda que ele possa usar com terceiros – uma moeda “forte”, de grande aceitação. Na prática, algumas poucas moedas dominam as transações internacionais: o dólar é largamente a principal, com o iene (Japão ¥), o euro (União Europeia €), a libra (Reino Unido £) e, em menor grau, o renminbi (China ¥, mesmo símbolo do iene) compondo as chamadas moedas “fortes”. Essa aceitação as ajuda a serem consideradas boas moedas para se reter no longo prazo – boas reservas de riqueza. Por isso, há uma tendência para que as riquezas acumuladas no mundo todo sejam mantidas nessas moedas, dando grande autonomia para esses países – que podem auxiliar os demais em um ambiente cooperativo de estabilização, ou não.

Enquanto isso, nos demais países de moeda “fraca” – como aqui, na América Latina – nós dependemos profundamente da nossa capacidade de conseguir moeda forte. A principal necessidade é para pagar por importações – seja de consumo da população (alimentos, remédios, eletrônicos, softwares, etc.), seja de insumos produtivos (combustíveis, peças, máquinas, químicos, etc.). Ainda que parte dessas importações seja supérflua ou ao menos substituível (não vamos morrer sem um iPhone), parte significativa é essencial para a população viver e para a indústria nacional funcionar. Importar é crucial.

As moedas latinoamericanas passam por crises recorrentes e por isso são rejeitadas, o que reforça sua vulnerabilidade

Contudo, são recorrentes na nossa história as crises de escassez de dólar, quando não conseguimos mais moeda forte e por isso a taxa de câmbio sobe nas alturas, permanentemente, e temos dificuldade de importar – resultando em recessão, desemprego, ao lado de alta inflação. Isso não é algo “natural”: desde os anos 1970, os EUA optaram por reforçar a supremacia do dólar sem garantir um ambiente internacional cooperativo de estabilidade, mas pelo contrário, alimentando a instabilidade – como a Argentina tem vivido, como o Brasil já viveu várias vezes. Esse processo arrasa a confiabilidade das moedas periféricas como reservas de riqueza a longo prazo, já que a qualquer momento elas podem perder seu valor. O caso de dolarização na Argentina é típico, pois a cada rodada de desvalorização, recessão e inflação, se seguem ainda pacotes do governo cada vez mais drásticos, reforçando a incerteza geral sobre o futuro.

Assim, pelas crises recorrentes, perde-se a confiança na moeda local: o mercado financeiro internacional, os países vizinhos, e a própria população querem se livrar dela assim que possível, exigindo a troca por moeda forte. Ela é vista, então, como algo transitório, especulativo, que só vale a pena reter enquanto dá altos lucros e a qualquer momento pode ser vendido em troca das moedas fortes – essas sim, reservas de riqueza a longo prazo. Essa transitoriedade da moeda faz com que o país precise se subordinar financeiramente no mundo – o que o torna mais vulnerável, realimentando o processo. Dessa forma, a hierarquia de moedas é estrutural: ela envolve mecanismos que só a reforçam e perpetuam a desigualdade global.

A subordinação financeira da América Latina

O Sistema Monetário Internacional atual – hierárquico, pouco cooperativo com a periferia e alimentador das instabilidades – não é algo “natural”, espontâneo. Sua consolidação foi uma opção histórica dos países centrais, decidida ativamente através da gestão das crises financeiras internacionais, da atuação dos seus bancos centrais, e pela (des)regulação do sistema financeiro. Poderia ser diferente; já foi diferente, e segue em transformação. Mas hoje essa opção dos países centrais tem consequências severas de subordinação dos países periféricos – ainda que estes tomem para si toda a culpa de sua pobreza.

Sem transformação produtiva

Por um lado, esse sistema hierárquico, com moedas fracas expostas a crises recorrentes, implica em um horizonte curto para os investidores no país periférico, que não querem se comprometer por muitos anos. Isto é, na América Latina não ficam disponíveis financiamentos de longo prazo e com juros razoáveis, o que impede a execução de projetos maiores de longa maturação – como infraestrutura, grandes mudanças produtivas ou transição energética – mesmo que tais projetos sejam rentáveis a longo prazo.

Ficamos, assim, presos a uma economia centrada em produtos de baixo valor agregado, como matérias-primas agrícolas e minerais. Essas, de fato, são a maioria das exportações latinoamericanas – nossa principal fonte de moeda forte! – produtos que passam por muita competição de outros países produtores e altíssimas oscilações de preço no mercado internacional – além de terem grande impacto ambiental. Em suma, a moeda de horizonte curto não financia o desenvolvimento produtivo, e o país só tem para exportar esses produtos voláteis. E quando eles estão em baixa, temos falta de dólar – como na Argentina passando por secas, sem carne para exportar.

Instabilidade permanente

Mas, além dessa trava na evolução do sistema produtivo, a hierarquia de moedas também provoca muita instabilidade macroeconômica no dia a dia. Quando os investidores internacionais (que podem até ser do próprio país, mas têm a “cabeça” dolarizada) veem oportunidades de lucros em um momento otimista de crescimento da periferia, eles buscam a moeda fraca para fazer empréstimos e investimentos nela. Essa é a outra principal fonte de moeda forte dos países periféricos – pegar empréstimos externos ou receber investimentos estrangeiros – mas ela leva a uma nova necessidade de moeda forte: para pagar essas dívidas, ou deixar os investidores retornarem seu capital para os países centrais.

As duas faces da moeda fraca: sem crédito para desenvolvimento, subordinação à especulação financeira.

De fato, hoje, com a globalização financeira desregulada, os fluxos de capital financeiro internacional são extremamente grandes, mas também altamente voláteis e especulativos e, sobretudo, seguindo ondas de otimismo ou pessimismo a partir do desempenho das economias centrais. Por conta disso, um país periférico sofre a ameaça permanente de uma “fuga de capitais” ou “fuga para a qualidade”, que é quando muitos investidores decidem tirar seu dinheiro do país demandando moeda forte. Assim, a moeda fraca tem uma grande fragilidade, pois esses fluxos financeiros são de curtíssimo prazo e podem se inverter do dia para a noite. Esse processo pode ser causado simplesmente por movimentos especulativos e “efeitos-manada” não contidos, mas em geral segue marés internacionais com causas oriundas dos países centrais. Apesar disso, o diagnóstico encontrado na mídia em geral vai apontar causas internas nos erros do governo e recomendar maior subserviência ao capital financeiro – para além do que realmente seria necessário em cada crise. 

Errando ou não o tamanho da dose, para diminuir a volatilidade tais países se veem obrigados a reforçar sua “atratividade” definindo juros domésticos altos (como a Selic no Brasil), e em casos extremos a pedir empréstimos externos em condições financeiras abusivas de juros altos e imprevisíveis, ou se subordinar às reformas impostas por credores como o FMI (como na Argentina até hoje; como no Brasil até 2005). A hierarquia de moedas, portanto, segue se reforçando através dessa subordinação financeira, a qual traz grandes lucros para especuladores e rentistas – com seus defensores na mídia, na academia e no governo – sem previsão de término pelo livre jogo do mercado.

A saída é a articulação regional

As composições de força estão mudando no mundo, aceleradamente. No plano mais propositivo, estão se esboçando transformações do ordenamento internacional, como as articuladas em torno do G20 ou a expansão do grupo dos BRICS. Nesse contexto, surgem iniciativas para combater a hierarquia de moedas e a subordinação financeira dos países periféricos. 

Todos os caminhos passam pela cooperação entre países para aliviar o ambiente desregulado e pouco amistoso do Sistema Monetário Internacional. De fato, a cooperação monetária entre o Sul Global é essencial para pavimentar maior integração econômica e fortalecer blocos regionais – a crise argentina não é um problema individual, mas prejudica também os seus vizinhos, de forma que uma solidariedade financeira latinoamericana teria grandes frutos para o desenvolvimento dos nossos países em conjunto. Precisamos cooperar, não apenas no plano produtivo, mas também na esfera monetária.

Na prática, as propostas de enfrentamento da questão frequentemente passam pela articulação dos recursos dos países em bancos públicos e bancos multilaterais. São bancos “de desenvolvimento”, isto é, bancos criados em reação ao horizonte curto do capital financeiro – como o BNDES, de 1952 – que promovem o financiamento de longo prazo, com baixos custos e condições previsíveis, de projetos estratégicos como obras de infraestrutura. 

Precisamos cooperar, não apenas no plano produtivo, mas também na esfera monetária.

Hoje, parte das propostas internacionais gira em torno dos Bancos “Multilaterais” de Desenvolvimento (BMDs) – instituições supranacionais, independentes, com mandatos técnicos de políticas públicas baseados em acordos internacionais, e de propriedade de 2 ou mais países que os capitalizam. Elas têm influência no direcionamento do desenvolvimento de cada país a partir da escolha dos projetos financiados, das recomendações técnicas e das eventuais condicionalidades que os acompanham. Nesse sentido, historicamente o Banco Mundial e o BID foram muito associados à disseminação das políticas neoliberais do Consenso de Washington pela imposição de condicionalidades aos países, enquanto o CAF possui uma postura menos impositiva, e mais recentemente, em 2014, os BRICS articularam a criação do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB) como uma alternativa controlada pelo Sul Global.

Os três principais Bancos Multilaterais de Desenvolvimento na América Latina hoje
Banco Mundial
Controlado pelos países centrais, foi criado em 1944 no contexto do imediato pós-guerra dos EUA recuperando o desenvolvimento da Europa.
Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID
Interamericano mas de início com 60% de participação dos países periféricos, foi criado em 1959 na agenda panamericana da Guerra Fria.
Banco de Desenvolvimento da América Latina e do Caribe – CAF
Controlado pelos países latinoamericanos, foi criado em 1968, inicialmente ligado à Comunidade Andina.

Desse modo, desde que sob uma nova governança global, os BMDs podem ser chave no alívio da hierarquia monetária. A Nota do Transforma discute diversos caminhos para o enfrentamento da hierarquia de moedas – como maior uso das próprias moedas em transações entre vizinhos, coordenação entre países periféricos diante de ataques especulativos, empréstimos em moeda forte para serem pagos em moeda local, para além, é claro, do financiamento a longo prazo de projetos estratégicos – que podem ser avançados por meio dos BMDs, fomentando a integração regional.

Dessa forma, a superação da hierarquia de moedas passa pela articulação dos países periféricos – criando cooperações e órgãos financeiros supranacionais para aliviar sua condição de economias vulneráveis – de modo a construir uma economia mundial na qual essas moedas fracas tenham vez.


texto: andré aranha

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