Os intocáveis do dinheiro

Sociedade civil denuncia injustiça tributária e trava batalha contra paraísos fiscais

O mundo está afundado em uma contradição tão evidente quanto escandalosa: enquanto milhões de pessoas e pequenas empresas lutam para pagar suas contas, as maiores corporações e os superricos flutuam acima das leis, encastelando suas fortunas em paraísos fiscais. Esta prática tem impactos drásticos sobre os orçamentos públicos do mundo todo, fazendo com que se percam US$ 492 bilhões ao ano em tributos (Tax Justice Network, 2024). O desfalque no financiamento de políticas como saúde, transportes ou desenvolvimento econômico sustentável é arquitetado por aqueles que mais deveriam contribuir para o bem comum. 

Como essa elite faz para evitar a tributação? Acontece que os impostos, principalmente os dos países do Sul Global, possuem uma complexidade nada democrática. Pequenas e médias empresas têm dificuldades com a necessidade de muito planejamento no momento de pagar impostos, sob o risco de pagarem mais do que o devido. A necessidade do planejamento tributário acaba por privilegiar as grandes empresas – e também as pessoas mais ricas no tratamento das suas propriedades, heranças, e diversos tipos de rendimentos – que podem contratar exércitos de contadores e advogados a fim de classificar inteligentemente os valores, aproveitando descontos, benefícios, evitando multas e processos. Só isso já cria privilégios para a elite. 

A questão começa a tocar em uma zona cinzenta do ilícito, ou pelo menos do antiético, quando um planejamento tributário agressivo leva a empresa a mudar de domicílio fiscal para um paraíso fiscal para pagar menos impostos. O passo seguinte é o abuso fiscal: quando as corporações simulam operações, criam empresas de fachada e relações comerciais fictícias apenas para evitar impostos. Todo esse cenário se beneficia da discrição, pois, no mínimo, tensiona uma zona cinzenta da legislação, mas frequentemente envolve evidente sonegação de impostos, além de abrigar também fluxos de lavagem de dinheiro do crime organizado. Se a possibilidade de usar o paraíso fiscal é uma injustiça tributária, o lugar em si, pela sua opacidade, é um terreno fértil para diversos abusos. 

O paraíso fiscal, que nada tem de paradisíaco – em inglês é haven, refúgio, e não heaven, paraíso – é um abrigo para a elite financeira global, onde a evasão fiscal é a porta de entrada para um perigoso universo de anonimato legal. A estratégia é generalizada: hoje, 180 das 200 maiores empresas do planeta utilizam paraísos fiscais (Oxfam, 2025). Os quais, por sinal, não são apenas aquelas caricatas ilhas do Caribe, já que a Suíça, a Holanda, a Irlanda, Singapura ou mesmo Delaware, nos Estados Unidos, também são sofisticados refúgios para as fortunas que fogem da tributação. Toda essa injustiça fiscal acaba por aprofundar um contexto de extrema desigualdade global, em que o 1% mais rico do mundo ficou com quase 2/3 de toda a riqueza gerada desde 2020, seis vezes mais dinheiro que 90% da população global conseguiu no mesmo período (Oxfam, 2023). 

A questão dos paraísos fiscais foi ganhando vulto a partir dos anos 1980 com a desregulação dos mercados e a financeirização da economia, mas na política ela ficou dormente por anos – pelo tecnicismo e pela falta de transparência. Recentemente, porém, o cenário começou a mudar, graças a esforços da sociedade civil organizada para revelar esquemas com paraísos fiscais e fiscalizar grandes empresas. Escândalos como Panama Papers (2016) e Pandora Papers (2021) revelaram como artistas, atletas e políticos mundialmente conhecidos escondiam fortunas do escrutínio público, e dos impostos. Ao mesmo tempo, os movimentos de tributar os ricos ganharam visibilidade por todo o mundo e, atualmente, cada vez mais movimentos sociais e estudantis vêm tomando para si a bandeira da justiça tributária. 

Mas a batalha ainda é longa. Corporações e superricos que cometem abusos fiscais, bem como regulações permissivas com uso de paraísos fiscais, seguem se refugiando de críticas por conta do desconhecimento sobre o assunto na sociedade. Portanto, as transformações necessárias demandam controle social, mais informação e pressão sobre quem toma decisões nas esferas pública e privada. O caminho é o de seguir criando consciência sobre a importância do tema, visibilizando os impactos da injustiça tributária, expondo e investigando companhias fraudulentas, e mobilizando a população para mudanças na regulação dessas atividades.

Novo imposto global é mínimo

A atuação de multinacionais e dos superricos é global, e os paraísos fiscais são Estados independentes. Diante dessa realidade, qualquer solução para essa rede de injustiça fiscal passa pela cooperação internacional.

Nesse sentido estão avanços recentes no âmbito da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) – um fórum restrito que reúne 38 países da Europa e das Américas, além de Austrália, Japão, dentre outras nações, mas sem grandes países como China, Rússia e Índia, ou países africanos. A OCDE propôs a criação de um imposto de renda mínimo global de 15% para as corporações, o que foi saudado como grande avanço e endossado por mais de 140 países e territórios em 2021, e implementado por mais de 50 em 2024 – inclusive pelo Brasil. A promessa é simples: que cada multinacional pague sempre, ao menos, 15% de imposto de renda. Caso uma corporação pague menos do que isso em um país, outras nações em que ela atua podem cobrar a diferença. 

No entanto, ironicamente, os próprios paraísos fiscais, tendo a Suíça à frente, apoiaram e já estão implementando a medida. De fato, 15% é bem menos do que normalmente são taxados os lucros corporativos, valor que fica entre 25% e 35%. O resultado? Transferir lucros para paraísos fiscais segue sendo vantajoso, e a vitória é apenas um ensaio simbólico do que ainda precisa ser feito.

Transparência está avançando

O crescente debate na sociedade por justiça fiscal levou recentemente a uma vitória importante com repercussões no mundo todo. A Austrália aprovou, em dezembro de 2024, uma lei sobre transparência para as multinacionais com atuação no país. A norma, que está na vanguarda do combate ao abuso fiscal, determina que empresas com faturamento anual a partir de US$10 milhões informem publicamente impostos pagos, lucros e dados financeiros em uma ampla lista de paraísos fiscais. Essas informações poderão ser usadas por jornalistas, ativistas, governos e academia para monitorar o comportamento fiscal e financeiro das multinacionais. 

O impacto é enorme: cerca de 50% das grandes empresas dos Estados Unidos, e uma considerável parcela de multinacionais de países como China, Japão e Alemanha, terão que divulgar dados sobre a utilização de paraísos fiscais (EU Tax Observatory, 2024). No Brasil, pelo menos 7 empresas precisarão fazer o mesmo, evidenciando a relevância da medida para a transparência fiscal também em outros países. Agora, a expectativa é que essa legislação inspire normas semelhantes em todo o mundo, colocando os protagonistas dessa história sob os holofotes do controle social.


A Campanha Tributar os Super- Ricos é um movimento nacional para promover justiça fiscal, propondo um sistema tributário progressivo, onde quem tem mais paga mais e quem tem menos paga menos.

As medidas estimam arrecadar cerca de R$ 300 bilhões ao ano, tributando apenas 0,3% mais ricos da população – cerca de 600 mil pessoas entre 215 milhões de brasileiros.

A campanha iniciou em abril de

2020 com a redação de propostas. A seguir recebeu o apoio de mais de 70 organizações nacionais.

Criada pelo cartunista Renato Aroeira, a mascote da campanha é a Niara, uma pré-adolescente negra que em tirinhas semanais

mostra as injustiças de forma simples.

Conheça a campanha: 📸 @tributar.os.super.ricos

A Campanha Tributar os Super- Ricos é um movimento nacional para promover justiça fiscal, propondo um sistema tributário progressivo, onde quem tem mais paga mais e quem tem menos paga menos.

As medidas estimam arrecadar cerca de R$ 300 bilhões ao ano, tributando apenas 0,3% mais ricos da população – cerca de 600 mil pessoas entre 215 milhões de brasileiros.

A campanha iniciou em abril de 2020 com a redação de propostas. A seguir recebeu o apoio de mais de 70 organizações nacionais.

Criada pelo cartunista Renato Aroeira, a mascote da campanha é a Niara, uma pré-adolescente negra que em tirinhas semanais mostra as injustiças de forma simples.

Conheça a campanha: 📸 @tributar.os.super.ricos

Colômbia: ativismo por justiça fiscal 

A privatização de serviços públicos na América Latina vem criando novos canais de evasão fiscal, drenando recursos essenciais para o desenvolvimento dos países e comprometendo a qualidade dos serviços oferecidos à população. Exemplo emblemático dessa prática foi revelado na Colômbia, onde a estatal de energia elétrica Isagen, privatizada em 2016, passou a ser controlada pelo fundo de investimentos canadense Brookfield. O que aconteceu depois é um caso clássico de planejamento tributário agressivo disfarçado de gestão corporativa. 

A tática é conhecida e ardilosa: multinacionais “transferem” artificialmente seus lucros do país produtivo para outras filiais suas sediadas em paraísos fiscais. Tais filiais de fachada cobram custos desproporcionais da empresa no país produtivo – como altíssimos juros sobre dívidas; gastos difíceis de precificar como uso de marca e de patentes; ou mesmo excessivas cobranças com consultoria, gestão e administração. No papel, tudo parece legal. Na prática, trata-se de uma engenharia financeira criada para criar prejuízos no país produtivo, e lucros onde não se paga impostos. 

No caso da Isagen, os números revelados expõem a tática. Desde a privatização, os pagamentos de dívidas aumentaram em 357%. Em 2023, a Isagen desembolsou cerca de US$ 450 milhões em juros, dos quais 29% sabemos que foram para empresas controladas pela Brookfield nas Bermudas – um clássico paraíso fiscal britânico no Caribe. Há fortes indícios de que tal prática foi utilizada para reduzir a renda tributável e os recusos disponíveis para negociar salários e melhores condições de trabalho com as pessoas que trabalham na empresa. O gráfico a baixo mostra a evolução desses pagamentos de dívida.

Fonte: CICTAR, 2024.

O lucro da Isagen triplicou desde 2023, e com isso foram pagos mais US$ 864 milhões de dividendos para os acionistas (isto é, para a Brookfield). Enquanto isso, os colombianos enfrentavam uma severa crise energética, com ameaças de racionamento e um aumento de 30% no custo da eletricidade. Não à toa: se antes da privatização os investimentos em infraestrutura elétrica consumiam quase metade das receitas da empresa, após a venda eles despencaram para ser em geral 10 vezes menores. 

Essa denúncia, trazida à tona por um relatório do Centro Internacional de Pesquisa em Assuntos Fiscais Corporativos (CICTAR) em parceria com sindicatos locais e com a Internacional de Serviços Públicos (ISP), revela um padrão preocupante. Na medida em que serviços públicos de infraestrutura como energia, saneamento e transportes em toda a América Latina vêm sendo vendidos a fundos estrangeiros, cresce a urgência de examinar suas finanças com uma lupa. Sem isso, os países da região continuarão assistindo à pilhagem de seus recursos enquanto pagam cada vez mais caro por serviços essenciais. 

CICTAR

O Centro Internacional de Transparência e Pesquisa em Fiscalidade Corporativa (CICTAR em sua sigla em inglês) atua com pesquisa sobre as principais corporações do mundo para apoiar lutas sindicais. O Centro acredita  que é possível construir um mundo mais justo e equitativo, com serviços públicos prósperos e trabalhadores em empregos de qualidade que paguem um salário justo. Ao chamar a atenção para o abuso empresarial e ao expor o impacto da evasão fiscal agressiva, sindicatos, ativistas e movimentos sociais podem  trabalhar coletivamente para reformar as regras e restaurar o equilíbrio de poder no local de trabalho e a nível nacional, regional e global.


pesquisa: cictar

edição: andré aranha

redação: gilka resende

Referências no texto

CICTAR – Centre for International Corporate Tax Accountability and Research. Isagen propriedade da Brookfield: Um exemplo para exigir mudanças tributárias em nível mundial.

EU Tax Observatory. 2024, por Giulia Aliprandi. Australian Public CbCR: filling the gaps?

Oxfam. 2023 A “sobrevivência” do mais rico. O 1% mais rico do mundo embolsou quase 2 vezes a riqueza obtida pelo resto do mundo nos últimos 2 anos. Veja aqui e aqui.

Oxfam. 2025. Inequality and poverty: the hidden costs of tax dodging.

Tax Justice Network. 2024. The State of Tax Justice 2024 (relatório).

Entenda a realidade além da fachada “o agro é tudo”. A disputa pelo uso da terra, aumento de emissões de GEE e desmatamento são facetas do agronegócio, que ficam ocultas pela fachada midiática e que precisam ser consideradas nesse debate.

Nessa seção veja as colunas:

Por onde anda o desmatamento?
A concorrência pela terra
O desmatamento na prática
A economia do desmatamento no Brasil

Leia mais

Mercados de Carbono na teoria e na prática. Entenda as limitações de colocar a solução da crise climática na mão do mercado.

Leia mais

A instabilidade da cotação do dólar não é um fato isolado da economia brasileira, mas sim uma característica comum dos países do Sul global. Entenda como funciona essa dependência e quais os desafios envolvidos.

Nessa seção veja as colunas:

Onde as moedas fracas não têm vez
A subordinação financeira da América Latina
A saída é a articulação regional

Leia mais

Por que pequenas e médias empresas estão sujeitas a altas cargas tributárias enquanto grandes empresas e multinacionais conseguem se esquivar dessa responsabilidade? Entenda o caminho do dinheiro dos super ricos para driblar a justiça fiscal.

Nessa seção veja as colunas:

Novo imposto global é mínimo
Transparência está avançando
Colômbia: ativismo por justiça fiscal

Leia mais

João Raiel, graduando do curso de economia da UFPA, traz um debate sobre a crise ambiental ser uma crise do próprio modo de produção do conhecimento.

Leia mais

Nossa missão: democratizar o debate econômico e torná-lo acessível ao maior número de pessoas. Afinal, todas as pessoas deveriam compreender a complexa realidade em que vivemos.

Leia mais

Um diálogo sobre desigualdade, limites da teoria neoclássica e o papel de economistas na transformação social.

Leia mais