O preço do ar

A promessa dos mercados de carbono esconde um sistema falho, opaco e lucrativo para os poluidores

COBERTURA DO TRANSFORMA

Nesta página a Caneta Crítica traz uma cobertura da Nota “Um ambiente para negócios: por que os mercados de carbono não podem evitar a catástrofe climática?”, publicada pelo Transforma (Unicamp), com autoria de Pedro Paulo Zahluth Bastos. 

Trazemos em linguagem acessível os seus principais debates sem refletir necessariamente as posições da Nota, buscando estimular sua leitura. A versão completa dela está disponível no site do Transforma.

O ano de 2024 bateu recordes de calor, ultrapassando o limiar de temperaturas 1,5° maiores do que os níveis pré-industriais. Por todo o lado estamos vendo as consequências desse processo com secas, queimadas e inundações. A crise climática está cada vez mais presente, e para enfrentá-la tivemos, no ano passado, grandes avanços nos chamados mercados de carbono. Na COP 29, em Baku, Azerbaijão, a ONU criou o mercado global de carbono, enquanto no Brasil foi aprovada a Lei n° 15.042 que cria um mercado de carbono regulado pelo governo brasileiro. Mas ainda que tenham alguns pontos positivos, esses mecanismos são solo fértil para ilusões e fraudes, e atrasam a discussão sobre o que realmente precisa ser feito.

A ideia de um mercado de carbono busca uma solução à crise climática através do próprio livre-mercado, apenas ajustando sua rota. Em vez do Estado cobrar impostos de setores poluentes e decidir como gastá-los, essa transação seria feita diretamente entre empresas. A simples comercialização da nova mercadoria – o direito de emissão, correspondente ao serviço de limpeza do ar que a vegetação realiza e a poluição consome – criaria os incentivos corretos para as empresas, como descrito na tirinha abaixo, inspirada no abrangente modelo brasileiro.

Depender dos interesses de lucro para criar o bem comum é bastante problemático. Tudo gira em torno da ideia de que a empresa poluidora poderia pagar para compensar sua poluição em vez de reduzi-la – algo muito atraente para grandes corporações. A mensuração do quanto é preciso pagar, e de que atividades realmente compensam emissões é, na prática, bastante incerta – algo mais atraente ainda. Com isso já surgiram muitos mercados voluntários de créditos de carbono: iniciativas empresariais pouco reguladas, baseadas em métricas idiossincráticas, usadas para empresas se dizerem sustentáveis sem que isso tenha muita comprovação científica, auditoria, e controle social sobre o processo. É o greenwashing, que depende da lucratividade que a imagem verde proporciona para a empresa, e dos critérios incertos de verificar a compensação da emissão.

Do mesmo modo, a compensação de emissões, quando envolve estimular o reflorestamento pelo lucro – buscando o menor custo – pode levar ao plantio de monoculturas de crescimento rápido, como eucalipto ou pinho. São os chamados desertos verdes, sem biodiversidade de plantas ou animais, e que além disso consomem muita água para seu crescimento. De toda forma, não haveria espaço no mundo para plantar tanta floresta – sem contar que muitas estão sofrendo queimadas com as secas – quanto necessário para compensar a poluição atual.

Mas as iniciativas governamentais e dos acordos internacionais são os mercados regulados, com imposição estatal da redução de emissões e maior controle social sobre as metodologias empregadas.

Ainda assim, a força dos lobbies empresariais é uma constante na distorção dos efeitos idealizados do mecanismo. Campanhas sistemáticas de desinformação, subestimação dos efeitos da poluição, e superestimação da capacidade de compensação, conseguem que as metas de redução de emissões sejam frouxas e incertas no futuro. Inclusive um setor inteiro, a agropecuária, no mundo todo é dispensado de reduzir suas emissões. 

Em meio a grandes interesses empresariais dominando o debate público, o entendimento sobre o mecanismo acaba muito restrito. Afinal, são múltiplos mercados de carbono – regulados, voluntários, nacionais e internacionais – e há uma multiplicidade de formas de certificação de serviços ambientais e de entidades regulatórias que estão sempre em mutação e sem uma definição clara sobre órgãos fiscalizadores. É um debate opaco. Por isso, é muito fácil que comunidades com direitos sobre florestas sejam incapazes de negociar, podendo ser enganadas e exploradas, enquanto isso tudo prossegue com a sociedade politicamente apática em relação ao debate regulatório.

Entretanto, para além dos efeitos perversos do lucro, há um problema mais profundo. Mesmo que regulássemos muito bem o mercado, ele ainda não seria a solução para a crise ambiental. Reduzir as emissões passa pela conversão geral para um sistema eletrificado baseado em fontes renováveis – o que por sua vez requer a criação e a disseminação de tecnologias radicalmente novas, bem como a instalação de enormes infraestruturas adaptadas a essas novas fontes energéticas. Esses avanços não vão ocorrer de maneira dispersa e autônoma apenas porque o preço do combustível fóssil aumentou. Esse aumento, por si só, causa apenas o encarecimento do custo de vida – devido à forte inércia tecnológica de todo o modo de produção e transporte – o que ainda aumenta a resistência da população à pauta ambiental!

São limitações clássicas da mecânica do mercado: por exemplo, o fato da rua estar cada vez mais engarrafada, ou da gasolina mais cara, não vai criando aos poucos um sistema de transporte coletivo – esse sistema requer um salto de todos os agentes mudarem juntos sua atuação. É algo que requer a ação do Estado e por isso o mercado de carbono é muito perigoso como uma ilusão que desvia nossas energias da questão principal – a necessidade de um programa estatal de investimento em tecnologia e infraestrutura para a transição energética. 

Para além da falha geral dessa concepção para enfrentar a crise climática, ainda vale dizer que a questão ambiental não se reduz a isso. Depois do crédito de carbono, precisaremos do crédito da água, do lixo, da contaminação, do desmatamento, da biodiversidade – sem nem entrar no impacto sobre a população. De nada adianta se as empresas, mesmo sendo carbono neutras, lançam químicos no lençol freático, têm altos riscos de rompimento de barragem, utilizam recipientes de vidro que não são retornados e viram resíduos quebrados. 

O carbono é só o início de um debate, um início perigoso porque cheio de ilusões. Ele tem brechas interessantes – no sentido da transferência de recursos para o Sul Global e da remuneração das florestas em pé – que são a parte mais progressista no debate. Mas elas não podem ser submergidas em um monte de ilusões sobre o mecanismo de mercado – opaco, gerador de resultados descoordenados e muito lucrativo para algumas empresas, tanto pelo lado do marketing, quanto pela especulação em torno desse novo ativo criado. 

A Nota do Transforma aprofunda essa discussão sob diferentes facetas, fornecendo um valioso exemplo de discussão prática sobre as limitações do livre-mercado com muito embasamento:

Em vez de deixar corporações e acionistas que lucram com emissões escolherem a esmo quais e quantos projetos devem ser financiados no Sul Global, esperando magicamente que o mercado de carbono evite o aquecimento global, é preciso partir do diagnóstico das necessidades de investimento em eletrificação com base em energias sustentáveis, na construção de sistemas agrícolas sustentáveis e na adaptação de infraestruturas para o mundo mais quente”.


pesquisa: sofia nery

edição: andré aranha

redação: gilka resende

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