A meta de resultado primário

Uma busca obsessiva por não ter déficits

Instituída pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) em 2000, a Meta de Resultado Primário busca, como o próprio nome já diz, um “resultado primário”, que é a diferença entre as receitas e as despesas. Se positiva, é um superávit; se negativa, um déficit. A Meta funciona como explicado no quadrinho abaixo. 

O governo tem que garantir que a Meta será cumprida, pois o descumprimento é considerado crime de responsabilidade fiscal. Todavia, a Meta é feita com base em uma previsão de receitas, que são algo volátil, podendo mudar radicalmente por conta de perdas de safras ou altas no petróleo, por exemplo. Por isso, o cumprimento da Meta prevista pode exigir vários cortes improvisados ao longo do ano, paralisando políticas públicas através dos chamados “contingenciamentos”. Fica a pergunta sobre se é “responsável” gerar tanta incerteza e sabotar o planejamento apenas para cumprir uma previsão de curto prazo. De fato, em pelo menos 13 anos desde 2001 o Congresso considerou que não, e aprovou uma redução da Meta para permitir seu cumprimento sem tantos cortes (Barbosa, 2022).

É “responsável” gerar tanta incerteza e sabotar o planejamento?

GOLPE Em 2015 essas contradições foram levadas a um extremo, que deixou sérias consequências. Naquele ano, conforme a economia entrava em crise e as receitas caíam (ver gráfico), o governo fez o maior contingenciamento da história, paralisando diversas políticas. Ainda assim, ficou claro que a Meta seria descumprida, e por isso, antes do ano acabar, o Congresso aprovou a sua redução permitindo o cumprimento. Contudo, em 2016, o processo contra a presidenta interpretou alguns gastos feitos antes daquela redução da Meta como crimes de responsabilidade fiscal, pois descumpriam a projeção da Meta para o fim do ano (Dweck, 2022). Esse tecnicismo com aparência de responsabilidade foi um argumento central para o impeachment. Entendendo o tecnicismo, fica mais clara a cortina de fumaça que disfarçou o golpe parlamentar, e que legitimou uma difusa criminalização da política fiscal que segue sabotando nosso planejamento estatal. Assim, a regra da Meta teve e tem grande importância como arma retórica – além de concreta – para a destruição dos nossos direitos.

O simplismo dos superávits fiscais

Além de poder sabotar o planejamento – a qualidade dos gastos – a Meta também é um limitador da quantidade dos gastos. A rigor, a LRF não define que a Meta deva ser de superávits, apenas que ela deve existir. Entretanto, o domínio do debate pela visão “fiscalista”, que reduz tudo à questão contábil de ter receitas maiores do que gastos, faz com que os governos, querendo se legitimar como responsáveis, todos os anos busquem gerar superávits, limitando seus gastos.

A consequência é que, desse modo, o Estado abdica de sua autonomia de decidir quanto gasta, esperando ver o quanto arrecada de tributos para saber o quanto pode gastar. Isso é conhecido como política fiscal pró-cíclica, pois na prática intensifica as altas e baixas do ciclo econômico. Quando a economia está bem e as receitas sobem, a busca de grandes superávits não impede fortes aumentos de gastos públicos, que realimentam o boom econômico – como ocorreu nos anos 2000 (ver gráfico). Agora quando vem uma recessão e as receitas caem, a busca pelo superávit leva a cortes de gastos que multiplicam as incertezas na economia, intensificando a crise – como sentimos na pele com a fortíssima recessão de 2015/2016.

Fonte: Elaboração própria com base em Boletim Resultado do Tesouro Nacional (RTN). A série inicia em 1997.

Ademais, reduzir o debate à geração de superávits é se basear em uma métrica volátil e de curto prazo, com um perigoso caráter pró-cíclico, que tanto compromete como não enxerga o papel do governo na sustentação, com gastos planejados e crescentes, de uma trajetória de crescimento da renda no longo prazo. Pois é o crescimento da renda, o crescimento da economia, que é a variável-chave, a qual determina as receitas do governo – e que é afetada pelos gastos. Com o olhar restrito ao resultado primário, perde-se de vista o funcionamento macroeconômico das contas públicas – enquanto se destrói políticas e direitos.

A meta no novo governo Lula

Em 2023, o governo Lula defendeu a ambiciosa Meta de reduzir o déficit de 2024 a zero, e alcançar superávits nos anos seguintes. Na prática, isso significa que o governo só realizará os gastos planejados se as receitas tiverem o desempenho previsto. Também é possível que a Meta seja reduzida, como vem sendo discutido no Congresso e se acirrou com as pressões fiscais da calamidade no Rio Grande do Sul (*). Mas, pelo menos, essa perigosa postura de defender Metas ambiciosas vem servindo para fortalecer a posição do governo em importantes enfrentamentos políticos. 

Isso porque é possível atingir o superávit sem cortes de gastos, mas por meio do aumento das receitas. E há espaço para aumentar as receitas porque o Brasil é um caso grave de subtributação dos ricos e das grandes empresas. De fato, nossa legislação possui muitas brechas e isenções que esses grupos exploram para pagar poucos impostos sobre a renda e o patrimônio. 

Contudo, corrigir essas distorções requer muito enfrentamento no Congresso. Dessa forma, o governo atual vem usando a Meta de reduzir o déficit como justificativa para retirar alguns privilégios. No ano de 2023, o governo conseguiu passar avanços importantes, como a tributação de fundos financeiros de superricos (“offshores” e “exclusivos”). Seguindo nessa toada, estão as intenções da equipe de governo de corrigir grandes distorções e tapar buracos em uma necessária reforma do Imposto de Renda.

Jogar com o fiscalismo para retirar privilégios históricos depende de uma fina barganha com o Congresso. No entanto, esta pode ser a estratégia possível para sustentar, a longo prazo, um governo com uma tributação mais justa. A análise da Meta precisa ir, então, muito além da manchete de jornal.

* Até o momento de edição desse jornal, a Meta de 2024 se mantinha igual e a LDO de 2025 ainda não havia sido aprovada.

Referências no texto

Pinto, Élida. 2010.  Discricionariedade, contingenciamento e controle orçamentário. Disponível em: Revista Gestão & Tecnologia

Barbosa, Nelson. 2022. 21 anos de Meta de Resultado Primário. FGV IBRE. Disponível em: Blog do IBRE (fgv.br)

Dweck, Esther. 2022. Os Constrangimentos fiscais na gestão do orçamento. Disponível em: Capítulo 9 do livro Governança orçamentária no Brasil (IPEA) 

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