Novo Arcabouço Fiscal: um novo Teto de Gastos?

Avanços tímidos sem garantir uma mudança de rumo

O fim do Teto de Gastos (EC 95) foi confirmado em agosto de 2023 com a aprovação do Novo Arcabouço Fiscal (NAF) para substituí-lo, trazendo importantes avanços nas possibilidades de atuação do governo sobre a economia. Contudo, o NAF mantém similaridades críticas com seu predecessor.

Começando pelo lado positivo, enquanto no Teto o limite de gastos federais estava congelado em termos reais, no NAF o limite acompanha o crescimento das receitas do governo, ainda que sempre um pouco menos, como explicado no quadrinho abaixo.

O mecanismo de crescer o gasto menos do que a receita tem a intenção de fazer as receitas serem cada vez maiores do que as despesas. Contudo, esse processo pode ser bem contraditório quando, por conta de uma estagnação econômica, se requer uma expansão inicial dos gastos para iniciar o crescimento e, consequentemente, alimentar as próprias receitas do governo. O NAF ao menos evita o caso extremo dessa subordinação de gastos a receitas, definindo um mínimo de crescimento do limite.

Agora o principal aspecto negativo é que o crescimento do limite de gastos também tem uma taxa máxima de 2,5% ao ano. Comparando, no gráfico abaixo, essa taxa com nossas médias históricas, a perspectiva é desoladora. É uma taxa melhor do que a trajetória recessiva dos últimos anos de Teto de Gastos (2016-2022), quando o gasto federal cresceu em média 1,1% ao ano (graças a manobras necessárias para burlar a limitação de crescer 0%). Estaremos melhor que isso, mas não teremos um processo de crescimento vigoroso como foi aquele induzido pelos gastos dos três primeiros governos PT (2003-2014); nem chegaremos perto do que foi feito nos governos FHC (1995-2002)!

Fonte: Elaboração própria com base em Boletim Resultado do Tesouro Nacional (RTN). A série inicia em 1997. A comparação com outras bases tratadas como Pires (2023) não modifica as conclusões. Taxas médias geométricas anuais. 

Os problemas do crescimento limitado

O limite de crescimento de 2,5% é bem restrito e pode comprometer o papel quantitativo dos gastos públicos como motor da renda nacional. Mas ele também pode ter uma consequência qualitativa em termos do quê será gasto, comprometendo a capacidade das políticas públicas promoverem um direcionamento da economia. 

Isso porque o orçamento público é composto tanto por “gastos obrigatórios” – que, por lei, crescem a uma taxa anual significativa, sendo os principais os gastos com saúde, educação e as aposentadorias da população – quanto por “gastos discricionários” – que são aqueles feitos por decisão do governo e que não possuem um mínimo estabelecido por lei. Por exemplo, em 2023 foram discricionários 93% dos Investimentos do governo, e 84% dos gastos em Ciência e Tecnologia. Com o NAF, se os gastos obrigatórios crescerem mais rápido do que o limite total, eles acabarão espremendo os gastos discricionários, levando a cortes. 

Cria-se assim uma disputa entre diferentes áreas essenciais do orçamento que deveriam caminhar conjuntamente. A consequência é clara: estamos sob risco de não parar o processo de sucateamento do Estado e de não ter espaço para iniciativas públicas inovadoras na escala necessária para liderar o desenvolvimento nacional. 

O NAF é um avanço, mas não resolve o problema

O NAF é um avanço, mas não resolve o problema. Foi necessário colocar algo para substituir o Teto, e o Congresso endureceu o projeto, criando uma solução de compromisso em meio a um cenário político delicado. A opinião pública, alimentada pela mídia, segue fortemente fiscalista, assim como a grande maioria do Congresso, inclusive parlamentares da esquerda. Além disso, temos que enfrentar a força dos senadores, deputados e diversos governadores de extrema-direita: é um governo sob cerco. Fica a pergunta se havia realmente alternativas menos rígidas na mesa, ou se o governo Lula 3 pesou demais a mão em atender a essas forças conservadoras. 

É preciso ocupar as brechas possíveis na regra com uma agenda estruturante, legitimando os gastos necessários para enfrentar a crise climática e as urgentes demandas sociais, enquanto são buscadas novas mudanças no regime fiscal nos próximos anos. 

As ameaças à Previdência

Um dos grandes desafios às limitações gerais de gasto (como o NAF e o antigo Teto) provém do fato de que o governo federal administra a previdência da população através do INSS. Isso porque os gastos com aposentadorias e pensões compõem quase metade do orçamento primário federal, e são gastos que o governo é obrigado a fazer conforme as pessoas se aposentam. Como a expectativa de vida está aumentando, na prática temos cada vez mais idosos aposentados do que antes, o que faz esses gastos terem um crescimento ano a ano. 

De 2016 a 2022, os gastos reais com a previdência geral aumentaram em média a 1,9% ao ano, o que fez com que eles saltassem de 42,6% do total de gastos em 2016, para 47,9% em 2022. Frente ao Teto com seu limite total crescendo 0%, isso contribuiu para espremer os gastos discricionários em quase 1/3, os quais caíram de 10,8% para 7,6% do total no período. 

Fonte: STN, base “Despesas e Transferências Totais da União (critério valor pago)”. Despesa sujeita ao limite da EC 95, subdividida pela Classificação RTN destacando II.4.2 e II.1. Análises ao longo do texto utilizando a mesma base, e deflator IPCA.

Ademais, as menores aposentadorias e pensões do INSS pagam o valor do salário-mínimo, acompanhando, portanto, os aumentos dele. O salário-mínimo entre 2016 e 2022 cresceu apenas uma média de 0,3% real ao ano, mas agora, com a nova Lei 14.663/23, vai crescer conforme o crescimento do PIB. Dessa forma, o crescimento dos gastos previdenciários também fica atrelado ao PIB – o qual, de acordo com as previsões, deve crescer pelo menos 2% ao ano. Assim, a pressão que o aumento dos gastos previdenciários exerce, espremendo os demais, tem sido – e continuará sendo – fortíssima.

Isso tudo alimenta pressões políticas por reduzir os direitos de aposentadoria da população, seja dificultando aposentadorias, seja a proposta atualmente em debate de pagar benefícios menores do que o salário-mínimo. A conta cai, então, sobre as pessoas trabalhadoras mais pobres, aumentando a desigualdade, e além de tudo comprometendo o alto efeito multiplicador que os gastos com as aposentadorias de baixa renda possuem. 

As ameaças à Saúde e à Educação

O NAF, assim como o antigo Teto, possui uma contradição latente com as garantias às políticas de Saúde e Educação. Isso porque os gastos nessas áreas, que compõem cerca de 14% do orçamento primário federal, possuem os chamados pisos constitucionais, que obrigam o governo a gastar uma proporção fixa da sua arrecadação nessas políticas. Por conta disso, quando a arrecadação cresce, esses gastos têm de crescer na mesma proporção, enquanto o limite do NAF cresce só 70% do que a arrecadação cresce, e limitado ao máximo de 2,5% ao ano (ver infográfico). 

Dessa maneira, se as receitas públicas crescerem muito, e os gastos em Saúde e Educação acompanharem esse crescimento, para isso caber no limite total do NAF, os outros gastos precisarão ser cortados. O antigo Teto de Gastos, para evitar esse conflito, suspendeu temporariamente os pisos; agora com o NAF o debate e a contradição seguem presentes. Os pisos são conquistas históricas – o piso da educação existe desde 1934 só tendo sido suspenso durante a ditadura; o da saúde existe desde 2000 – que garantiram um bom direcionamento dos gastos públicos nos mais diversos períodos. A motivação é, evidentemente, reduzir o financiamento dessas políticas. É urgente avançarmos no debate fiscal para defendermos a promoção desses direitos fundamentais que estruturam nosso desenvolvimento no longo prazo.

Referências no texto

Pires, Manoel. 2022. Despesas primárias do Governo Federal: 1986-2022. Disponível em: Observatório de Política Fiscal (fgv.br)

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