Polarização mundial — e o Brasil no G20

A presidência no G20 é uma oportunidade de romper impasses globais

COBERTURA DO TRANSFORMA Nesta página a Caneta Crítica traz uma cobertura de Notas de Economia publicadas pelo Transforma Economia (Unicamp), visando divulgar em linguagem acessível os seus principais debates e, assim, estimular sua leitura. O Transforma é um grupo de pesquisa e difusão de conhecimento em economia voltado para o diálogo com o governo e a sociedade e para o aperfeiçoamento de políticas públicas. Suas pesquisadoras e pesquisadores compartilham da ideia de que a economia é um instrumento para a transformação social e ambiental, e que isso requer democratizar o debate econômico.

A multifacetada crise contemporânea é mundial. Por todo o globo proliferam a pobreza e a desigualdade, a estagnação e os subempregos, as epidemias e os desafios da saúde, a poluição e os desastres ambientais, a violência e os conflitos geopolíticos. Mundial, a crise impõe o desafio de ações transnacionais para seu enfrentamento, atacando suas causas e combatendo seus efeitos. Mais do que nunca, é necessária a articulação internacional através das instituições de governança global.

No entanto, as instituições que hoje existem estão defasadas. Formadas no pós-Segunda Guerra, com o poder concentrado no Norte Global, elas permanecem até hoje praticamente inalteradas. Enquanto isso, nesses 80 anos que se passaram, o poder econômico e político do Sul Global chegou a um nível que não pode mais ser ignorado. A necessidade de reformar a governança global, para romper impasses e avançar soluções aos problemas coletivos, é premente. É, então, um momento-chave para a presidência do Brasil no G20.

Esse tema é debatido em detalhe na Nota O momento do Sul Global: oportunidades para a presidência brasileira no G20”, publicada pelo Projeto Transforma (Unicamp) em parceria com o MADE (USP) com autoria de Bruno De Conti, Pedro Rossi, Arthur Welle e Clara Saliba. A leitura dessa Nota é a inspiração para as colunas desta página, que buscam apresentar algumas linhas gerais desse debate, sem refletir necessariamente as conclusões da Nota. 

A ascensão do Sul Global – e de suas agendas

O processo de ascensão do Sul Global tem uma forte relação com a ascensão da economia chinesa, mas não só. O Sul tem hoje o mesmo PIB e produção industrial do Norte, ultrapassa este em produção de eletricidade e alimentos, e largamente no tamanho da população, sobretudo jovem. Ao mesmo tempo, estão no Sul Global os países e as populações mais afetados pelas diversas facetas das crises atuais.

Essa ascensão do Sul Global vem chocando-se com o anacronismo das instituições multilaterais existentes, regidas pelo Norte Global, o que gera impasses na elaboração de agendas coletivas e polarização. Dois processos fortalecem a posição do Sul Global e acirram esta polarização: (i) muitos países pobres vêm sendo atraídos para a esfera de influência da China; (ii) o grupo BRICS em 2023 iniciou uma ampliação para BRICS+ com objetivo de se tornar um fórum de discussões supranacionais. Esses processos fortalecem o Sul Global, mas não constroem soluções globais às crises contemporâneas, que requerem relações Norte-Sul.

Enfrentar o anacronismo das instituições multilaterais requer agendas supranacionais

Nesse cenário desafiador, o G20 tem sido um importante fórum internacional para as discussões de cooperação econômica global, reunindo as principais economias do mundo. E o Brasil, com sua histórica reputação diplomática, assumiu em 2024 a presidência do grupo, propondo mediar agendas relevantes. Nesse momento mundial, é fundamental a liderança brasileira para que soluções aos impasses sejam encontradas, e muitos países estão colocando esperanças na diplomacia brasileira. Nesse sentido, o governo brasileiro sinalizou três eixos prioritários para a sua presidência: (i) o combate à fome, à pobreza e à desigualdade; (ii) a transição energética e o desenvolvimento sustentável em suas dimensões econômica, social e ambiental; e (iii) a reforma do sistema de governança internacional. 

A resistência dos países do Norte Global seguirá grande, mas a percepção das disfuncionalidades do atual sistema legitima os pleitos brasileiros, que refletem a ascensão do Sul Global. Algumas das mudanças não virão de uma concertação global, e sim das transformações econômicas e geopolíticas em curso; mas aquelas que envolvem as instituições multilaterais podem ser favorecidas por articulações no G20. Retornando o país à cena mundial após 6 anos de ostracismo, o presidente Lula tem uma janela de oportunidade para reforçar a liderança do Brasil, criando agendas, reformando instituições, e propondo políticas coletivas que enfrentem as múltiplas crises. 

A cúpula do G20, conclusão dos trabalhos do ano, acontece em 18-19 de novembro, no Rio de Janeiro. Já em 2025, as atenções se voltarão para a presidência brasileira no próprio BRICS, que vem pautando iniciativas para diminuir a primazia financeira do dólar no mundo.

A luta contra a fome e a pobreza

O novo governo Lula propôs a criação de uma Aliança Global Contra a Fome e a Pobreza, que pode ter ampla repercussão. A vergonhosa realidade de quase 800 milhões de pessoas passando fome em um mundo que produz alimentos suficientes, pode ser mitigada somando vontade política com um desenho institucional eficaz, como o da política chinesa de alívio da pobreza, ou o da Política Fome Zero do Brasil. O governo brasileiro ainda precisa apresentar uma proposta concreta, contemplando sobretudo como será o financiamento e a articulação entre as várias instâncias governamentais. 

Tributação dos bilionários

Conectando pobreza com desigualdades, outra pauta que o Brasil está liderando é a tributação dos superricos ou bilionários. Hoje, um grande problema para se tributar os ricos e as grandes empresas é que eles enviam seus lucros para paraísos fiscais, e os países em que as empresas de fato atuam não conseguem taxá-los. São perdidos cerca de US$ 480 bilhões por ano com essas e outras práticas de abuso fiscal global (Tax Justice Network 2023) e para resolver isso são necessárias soluções coletivas. O governo brasileiro, além de apoiar as discussões em andamento sobre taxação de multinacionais, está propondo no G20 uma taxação das fortunas dos bilionários a nível global, que reduziria as desigualdades e levantaria recursos para implementar políticas sociais e ambientais.

Dívidas externas e financiamento climático

Para o combate às desigualdades entre os países, o Brasil deve trazer para a discussão as dívidas do Sul Global. A dívida externa dos países pobres bateu recorde em 2022 (Banco Mundial, 2023), e é uma questão central em países vizinhos como a Argentina. Durante e após a pandemia, o G20 lançou programas de suspensão de dívidas, os quais, apesar de terem resultados limitados, sinalizam uma oportunidade para que a presidência do Brasil avance com o projeto de renegociação ou perdão das dívidas do Sul. O fato de sermos hoje um país credor externo só aumenta a legitimidade do pleito, que não seria em benefício próprio, mas sim do conjunto de países.

Nas discussões internacionais, a questão do endividamento externo também aparece vinculada ao problema do financiamento climático. Mesmo num cenário de crescentes desastres ambientais, como tornados e enchentes, que afetam principalmente os países do Sul Global, a comunidade internacional ainda não oferece financiamento suficiente para a elaboração de políticas para enfrentar as causas e consequências das mudanças climáticas. Também não propõe alternativas para as dívidas externas, impossibilitando que esses países façam tais políticas por conta própria. Diante desse fato, o Brasil propôs a criação de uma Força Tarefa para a Mobilização Global contra as Mudanças Climáticas, que ajudaria a transformar o setor financeiro e a impulsionar a mobilização de financiamento para o desenvolvimento sustentável.

Referências no texto

O momento do Sul Global: oportunidades para a presidência brasileira no G20. Em parceria com o MADE (USP). Por Bruno De Conti, Pedro Rossi, Arthur Welle e Clara Saliba. Disponível em: Projeto Transforma

Banco Mundial, 2023. International Debt Report 2023. Disponível em: Open Knowledge Repository (worldbank.org)

Tax Justice Network. 2023. The State of Tax Justice 2023. Disponível em: Portal da Tax Justice Network 

No mundo todo, as políticas industriais estão evoluindo para abordar objetivos sociais e ambientais, o que requer uma reforma no Estado. Neste debate, o programa Nova Indústria Brasil (NIB) exemplifica uma iniciativa recente do governo brasileiro, e o Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS) uma política nacional madura para superar essas barreiras.

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