O paradigma de produção está começando a mudar
COBERTURA DO TRANSFORMA Nesta página a Caneta Crítica traz uma cobertura de Notas de Economia publicadas pelo Transforma Economia (Unicamp), visando divulgar em linguagem acessível os seus principais debates e, assim, estimular sua leitura. O Transforma é um grupo de pesquisa e difusão de conhecimento em economia voltado para o diálogo com o governo e a sociedade e para o aperfeiçoamento de políticas públicas. Suas pesquisadoras e pesquisadores compartilham da ideia de que a economia é um instrumento para a transformação social e ambiental, e que isso requer democratizar o debate econômico.

As crises econômica, social e ambiental impõem o desafio de transformar o modelo econômico vigente, mais especificamente a forma como produzimos e o que é produzido. Na última década, políticas públicas de transformação produtiva, as políticas industriais, voltaram a ganhar destaque nos EUA e na Europa, seja em nome do novo imperativo ecológico, seja visando a digitalização da economia. Porém, o desafio da renovação industrial coloca outro desafio, o da renovação das políticas pelas quais o Estado intervém na economia.
Esse tema é debatido em detalhe na Nota “Qual o projeto de desenvolvimento do Governo Lula 3? Reflexões a partir de um novo paradigma de política industrial”, publicada pelo Transforma (Unicamp) em parceria com o MADE (USP) e a FES Brasil, com autoria de Marco Rocha, Pedro Marques, José Bergamin, Lucca Rodrigues, Luiza Nassif e Pedro Rossi. A leitura dessa Nota é a inspiração para as colunas desta página, que busca apresentar algumas linhas gerais do debate sem refletir necessariamente as conclusões da Nota.
É preciso transformar o Estado
Historicamente, as políticas industriais foram focadas em setores específicos e seguiram somente metas econômicas, como o crescimento da produção e da produtividade. Agora, cada vez mais economistas e ativistas vêm defendendo políticas industriais sistêmicas, para transformar toda a economia, e com objetivos explicitamente sociais e ambientais. Assim, no centro da formulação industrial surgem metas relativas à descarbonização, à soberania nacional e à solução de desafios societais como o envelhecimento da população, a recuperação de áreas degradadas e a melhoria da vida urbana.
É nesse contexto que está ganhando destaque o novo paradigma de Políticas Orientadas por Missões, por contemplar: (i) missões que englobam dimensões não-econômicas e têm metas de fácil comunicação com a sociedade; (ii) o direcionamento das compras públicas como instrumento propulsor de setores produtivos alinhados à missão; e (iii) a articulação de ações transversais, entre vários órgãos públicos e setores econômicos.

Contudo, se esse debate vem avançando nos países centrais, assim como na China, não é fácil a sua adaptação para o contexto brasileiro. Como ensina a história do desenvolvimento na América Latina, enquanto nos especializamos na produção de commodities agrícolas e minerais com altos custos sociais e ambientais, enfrentamos nossa dependência de importações de insumos, tecnologia e capital. Além disso, lidamos com restrições ideológicas em nossas leis e instituições, as quais impedem o planejamento estatal. Esses fatores nos impedem de dar escala a uma política de desenvolvimento produtivo, quanto mais se for orientada ao bem comum. O desafio da renovação produtiva, e, por conseguinte, do Estado, é um desafio global com muitas incertezas e obstáculos, mas que são ainda piores no Sul Global.
Nova Indústria Brasil
O novo governo Lula apresentou propostas de retomada das políticas de desenvolvimento, abrangendo o debate internacional sobre nova política industrial. A Nota do Transforma sobre o tema analisa em detalhe as diversas políticas e órgãos brasileiros relevantes nessa discussão, traçando os seus potenciais e os seus limites.
As principais novidades estão em políticas orientadas por desafios pré-formulados – como a promoção da digitalização, ou da oferta doméstica de medicamentos – e na maior utilização de instrumentos como as compras públicas. O programa Nova Indústria Brasil (NIB), do Ministério do Desenvolvimento (MDIC), tem a ambição de propor um processo transversal nesse sentido. A NIB pretende articular uma série de agências e órgãos do governo em torno de um projeto de industrialização pautada por objetivos específicos, e utiliza instrumentos de direcionamento das compras públicas e de financiamento. A NIB possui seis missões: Bioeconomia e descarbonização; Digitalização para produtividade; Agroindústria sustentável para segurança alimentar e energética; CEIS para garantir o acesso à saúde; Infraestrutura e mobilidade para bem-estar nas cidades; Tecnologias para defesa nacional.
Contudo, em termos concretos, para identificar uma estratégia de desenvolvimento que vá além do discurso é preciso analisar a definição das fontes de recursos e as estruturas de governança e coordenação entre órgãos. Para ser bem-sucedida, a NIB requer a convergência de diferentes agentes estatais como órgãos setoriais, bancos de desenvolvimento, planos de ação, e políticas dos mais diferentes ministérios – os quais apresentaram outros programas não necessariamente congruentes, e por vezes sobrepostos. Além disso, a disponibilidade de recursos também não está assegurada, quando o principal órgão de financiamento, o BNDES, desde 2016 reduziu significativamente seus desembolsos, e as novas regras fiscais limitam a participação do Tesouro.

Frente a essas limitações, não fica claro se a NIB vai consolidar políticas de desenvolvimento da nova geração, ou se descaracterizar nos antigos moldes setorizados. Enfrentamos esses três desafios – coordenação, financiamento e descaracterização – para construir o desenvolvimento industrial que precisamos no Brasil.
O desenvolvimento aliado à missão da saúde
agradecimentos a juliana moreira e gabriela oliveira pela discussão
Mesmo com dificuldades, no Brasil há mais de uma década temos uma política que se enquadra no debate sobre desenvolvimento industrial orientado por missões socioambientais: o Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS). A análise do CEIS traz a concretude dos conflitos e benefícios de uma estratégia como esta em um país periférico.
Ainda que tenha antecedentes devido às crises de abastecimento de vacinas nos anos 1980, o CEIS é formulado como tal nos anos 2000, e teve como principal expressão as Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDP). Por meio delas o governo federal direciona suas expressivas compras dos produtos necessários para abastecer o SUS, utilizando-as como poder de barganha frente à indústria farmacêutica privada. Em troca de contratos de compra garantida por até 10 anos, a indústria privada transfere a tecnologia em questão para um laboratório público – como o Instituto Butantã, ou os laboratórios da Fiocruz Biomanguinhos e Farmanguinhos.

Há, dessa maneira, uma intensa coordenação entre o setor de compras públicas para o SUS, os laboratórios públicos e outras políticas de inovação e de desenvolvimento produtivo. Na prática, isso incentivou a indústria farmacêutica nacional a conseguir a tecnologia estrangeira, frequentemente detida por oligopólios multinacionais (a Big Pharma), e realizar a PDP com o laboratório público. As vulnerabilidades do SUS foram então reduzidas a partir do fomento da autonomia nacional na produção de insumos, enquanto a indústria farmacêutica nacional pôde consolidar-se com base nessas vendas garantidas.
Esse processo de desenvolvimento industrial é estratégico para o objetivo do SUS de garantir o acesso universal à saúde de qualidade, mas é apenas o início. Com a ampliação da autonomia tecnológica e produtiva do CEIS nacional, o SUS passa a poder direcionar a inovação de remédios, insumos e aparelhos. Esse direcionamento é essencial para evitar a tendência, perseguida pela lógica privada, de desenvolver medicações caras, de uso crônico e que não promovem a saúde. O processo de desenvolvimento econômico é, no CEIS, não um fim em si mesmo, mas um meio para a ampliação do bem-estar coletivo (Gadelha e Temporão, 2018). Com o SUS como missão, enfrentando oligopólios e as restrições produtivas e tecnológicas de um país periférico, o CEIS é um exemplo vibrante do tipo de desenvolvimento industrial que precisamos no Brasil.
Referências no texto
Qual o projeto de desenvolvimento do Governo Lula 3? Reflexões a partir de um novo paradigma de política industrial. Em parceria com o MADE (USP) e a FES Brasil. Por Marco Rocha, Pedro Marques, José Bergamin, Lucca Rodrigues, Luiza Nassif e Pedro Rossi. Disponível em: Projeto Transforma
Gadelha, C., Temporão, J. 2018. Desenvolvimento, Inovação e Saúde: a perspectiva teórica e política do Complexo Econômico-Industrial da Saúde. Disponível em: Revista Ciência & Saúde Coletiva