Como regras fiscais restritivas demais podem destruir o país
com clara saliba (unicamp)
Em 2022, com a transição de governo, foi articulado o fim do Teto de Gastos. O Teto foi criado em 2016, quando o novo governo Temer conseguiu a aprovação da Emenda Constitucional 95. Ele determinava que as despesas primárias (isto é, excluindo as despesas financeiras como o pagamento de juros) do governo federal deveriam se manter congeladas no patamar de 2016 por 20 anos, com crescimento zero, sendo realizada somente correção pelo aumento de preços.
O Teto provocou severos cortes de gastos, destruindo o orçamento de muitas políticas públicas – principalmente aquelas com gasto não-obrigatório como saneamento básico e gestão ambiental, mas também em políticas como saúde e educação, que possuem pisos mínimos de gastos. Isso tornou praticamente impossível qualquer planejamento de longo prazo. As consequências foram tão insustentáveis que logo foram criadas diversas exceções à regra, sobretudo em 2020 com a pandemia, tendo sido articulada sua substituição em 2022.
Um legado de fome
No Brasil, as últimas décadas assistiram ao enfrentamento – e ao abandono – da questão da fome, que ainda assola um em cada dez domicílios no país. A queda da insegurança alimentar nos anos 2000, e sua volta nos anos 2010, são movimentos fortemente relacionados à presença – ou à ausência – do Estado dinamizando a economia e promovendo políticas de combate à fome.
Em 2003, o Programa Fome Zero foi lançado, com um conjunto de diversas políticas como os incentivos à agricultura familiar, a estocagem e distribuição de alimentos pela CONAB (Companhia Nacional de Abastecimento) para não permitir a especulação com os preços, e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Por conta disso, em 2013 foi registrado o menor valor histórico – mas ainda significativo – de 7,8% da população com fome, e em 2014 o Brasil saiu oficialmente do Mapa da Fome da ONU.
Corte de gastos e sucateamento de políticas públicas são a receita certa para a volta da fome
Todavia, a dinâmica mudou a partir de 2015. Com a elevação do desemprego, que saltou de 7% em 2014 para 14% em 2017 (PNADc-IBGE), a renda disponível das famílias trabalhadoras se reduziu e isso impactou no acesso a alimentos. Também entre 2016 e 2022 houve o desmonte das políticas da CONAB, e a estagnação do valor do PNAE por aluno (FNDE, 2024). A situação alcançou contornos críticos em meio à pandemia e seus reflexos até 2022, com o fim do auxílio emergencial. Note-se que os números são ainda piores quando analisamos os domicílios chefiados por mulheres e pessoas pretas e pardas, como mostra o gráfico.
Fonte: Elaboração por Clara Saliba com base em Rede PENSSAN (2020 e 2022) e IBGE (POF 2009, 2018; PNADc demais anos)
Felizmente, em 2023 tivemos uma diminuição drástica da fome. A principal causa foi o aumento da renda, que se expressou na elevação em 11,7%, já descontada a inflação, da massa real de rendimentos do trabalho recebidos no país, a maior elevação em 30 anos (IFZ, 2024). Isso ocorreu devido à redução do desemprego, à estabilidade dos preços dos alimentos, ao aumento real do salário-mínimo, à retomada das políticas públicas voltadas para a alimentação, e à expansão dos programas de transferência de renda.
Essa trajetória da última década, de rápida elevação e rápida queda nos domicílios atingidos pela fome, demonstra que com políticas públicas e uma economia dinamizada pelo Estado é possível vencer a insegurança alimentar no Brasil. Tudo depende de um governo que coloque a segurança alimentar de sua população acima do fiscalismo.
Referências no texto
Instituto Fome Zero (IFZ), 2024. Insegurança alimentar: 24,4 milhões de pessoas saíram da situação de fome no Brasil em 2023. Disponível em: Notícia no portal do IFZ
Brasil: Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação – Alimentação Escolar. 2024. Disponível em: Notícia no portal do FNDE
Leitura complementar
História da Rede PENSSAN: Inquérito Nacional sobre a Segurança Alimentar e Nutricional no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (VIGISAN). 2024. Disponível em: Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (pesquisassan.net.br)